Mafra, pacata, saloia, simpática, antigo povoado neolítico, conquistada aos mouros em 1147 por D. Afonso Henriques, que assistiu em 1717 ao lançamento da primeira pedra da construção do imponente e maravilhoso monumento barroco, o convento, dedicado a Santo António pelo Rei D. João V, no cumprimento de uma promessa atinente à concepção de um príncipe herdeiro por parte da Rainha, Maria de Áustria, onde as tropas napoleónicas montaram o seu quartel-general em Dezembro de 1808, e onde o Rei D. Manuel II se refugiou na noite de 4 para 5 de Outubro de 1910, foi invadida no dia 11 de Abril de 2010 por milhares de atletas que participaram na 28ª Corrida dos Sinos e na 8ª Prova dos Sininhos.
O aspecto rústico desta terra avivou reminiscências da minha infância, e, uma após outra, imagens e sensações indeléveis, recalcadas nas profundezas do subconsciente, renasceram, como a fénix das cinzas, e então senti-as, e vi-as desfilar, nostálgicas e cheias de encanto, na passadeira vermelha do meu pensamento: o ranger dos carros de bois, o gorjear dos passarinhos, o murmúrio da água a correr nos ribeiros, o latir dos cães, o uivar dos lobos, o tamborilar da chuva a cair nos telhados, o silvo do vento, as trovoadas e os relâmpagos estridentes, o sol escaldante de Agosto, os dias gélidos de Dezembro, a sombra dum negrilho, o urro duma vaca e o ornear dum jerico à volta da manjedoura, o grunhir dos suínos no curral, o cantar dos pastores, o som duma flauta, dum realejo e duma concertina, o cheiro do petróleo a arder nas candeias, o cacarejar das galinhas, o zumbido das moscas e das abelhas, o repique dos sinos, o adejar duma borboleta, o miar dos gatos durante o cio, os bailaricos e as festas, o fito e o calhau, a sueca à hora da sesta na taberna do Esteves, os tempos de pastor de ovelhas e guardador de vacas, os namoricos, os bois a puxarem a charrua que rasga a terra, as sementeiras e as segadas, a carreja e as malhas, os rebanhos a pastejar, o ar extenuante estampado no semblante dos camponeses, o crepitar da lenha a arder nas lareiras, a matança do porco, a fuligem das cozinhas, a arranca das batatas, a rega, os banhos dos garotos todos nus no rio e nas poças dos lameiros, os ninhos de melro, estorninho e cotovia, brincar às escondidas, as pétalas dum malmequer, subir às árvores, o nariz a sangrar por ter beijado o chão quando brincava, as calças rotas nos joelhos e no rabo, uma côdea de pão de quinze dias, o caldo que minha mãe fazia, o odor nauseabundo do esterco no curral, as searas e as vinhas, os soutos, os giestais floridos, os grilos e as cigarras e as suas melodias, o perfume e a beleza das flores silvestres, o sol a brilhar por cima da fonte, cintilante, mirando-me na água corrente, um lagarto ao sol, o sussurro duma cobra a rastejar, as festinhas do piloto com a cauda a dar a dar, as lições de moral de minha mãe e de meu pai, o voo a pique das perdizes e rasante das andorinhas, a casa de banho ao ar livre, as casas de telha-vã, os palheiros e as hortas cobertas de neve, as estalactites de gelo pendentes dos beirais, as castanhas a caírem dos ouriços, a missa aos domingos, a festa do Santiago, as linguiças e as alheiras e os salpicões pendurados nos lareiros, os figos, as cerejas e as amoras, as estórias que meu pai contava, a água fresca da fonte da vila e da mina dos Morgados, a minha aldeia tão pequena e tão grande, tão lúgubre e tão alegre, tão desengraçada e tão bela.
Desculpem lá esta pequenina divagação. A priori até parece nada ter a ver com a corrida, mas tem, e sabem por quê? Porque durante uma prova tento abster-me da mesma pensando em coisas agradáveis, e desta vez passei em revista retalhos da minha terra e da minha meninice. Mas podes ser tu e a tua terra, pode ser qualquer um e qualquer terra. Esta é a minha estratégia para repelir pensamentos negativos que eventualmente me batam à porta quando a fadiga chega. Às vezes dá resultado, outras nem por isso. Mas voltemos ao tema, ou seja, a Corrida dos Sinos.
O percurso é durinho não é?! Mas olhem que já foi pior. Quem já fez o antigo e o actual sabe do que falo. A verdade é que não há percursos fáceis. Há-os mais ou menos aprazíveis, segundo o gosto de cada um. Como é sabido, uns gostam mais de subir, outros preferem descer, outros ainda tanto se lhe dá, para eles é igual ao litro. A propósito, o que acham se as provas se realizassem em plena Mata Real? Será que nunca ninguém pensou nisso? Pode ser que tivéssemos sorte e víssemos alguns dos exemplares extraordinários que constituem a fauna e a flora deste sítio encantador, como a águia-de-Bonelli, o bufo-real, o açor, chapins, rabirruivos e tentilhões, gamos, veados, javalis e raposas, coelhos e texugos, carvalhos, sobreiros, azinheiras, castanheiros, pinheiros, choupos, salgueiros, freixos, eucaliptos; trovisco, tojo, urzes, murta e carrasco.
Conheço razoavelmente bem este sítio e posso garantir que é muito lindo, que vale a pena um fim-de-semana qualquer pegar na família, nos amigos, nas namoradas e penetrar neste mundo natural, interagir com a natureza, conhecer os habitats das várias espécies aqui existentes, sentir-se parte deste admirável e interessante ecossistema.
Chega de conversa fiada, vamos ao que interessa, a convivência, a satisfação de juntar mais uma prova ao currículo, o amealhar mais uns quilómetros para o ranking mensal, a alegria de subir ao palco e elevar nas alturas mais uma taça, neste caso correspondente ao 8º lugar por equipas. Tudo o resto não interessa. Parabéns a todos.
Texto autoria de Leonel Neves
Resultados
27 - João Inocêncio – 53:29
38 - João Vaz – 55:04
39 - Paulo Povoa – 55:05
67 - Pedro Arsénio – 57:58
76 - Eurico Charneca – 58:29
77 - António Henriques – 58:33
108 - José Pereira – 1:00:29
272 - Leonel Neves – 1:06:07
408 - Armando Almeida – 1:10:48
450 - António Fernandes – 1:12:01
495 - José Moga – 1:13:10
600 - Hernâni Monteiro - 1:15:36
672 - Joaquim Gomes – 1:17:19
790 - Manuel Peras – 1:21:02
881 - Fernando Silva – 1:23:54
892 - Emílio Gonçalves – 1:24:29
894 - Luciano Tomas – 1:24:33
960 - Ricardo Nicolau – 1:27:28
977 - Afonso Pinto – 1:28:19
Participaram na Mini as nossas atletas
Ana Sofia e Maria João
A todos muitos Parabéns
4 comentários:
Belo texo.além de um excelente atleta,temos um grande escritor.
Parabens.
um abraço,António Fernandes
Pelo que li acredito que um dia o nosso clube vai ser notícia nos jornais e televisão, dado que, os atletas estão em forma e entre estes anda um escritor escondido. Parabens pelo texto e pelo lugar alcançado na prova.
Leonel parabéns pelo excelente texto e disser publicamente o quanto fico contente por ver a alegria dos nossos amigos na hora de receber uma taça, para muitos uma coisa insignificante e para nós "amigos vale silencio" a coisa mais importante naquele momento e sempre a enorme alegria do eleito para a receber, muitos de nos revela uma certa falta de jeito naquele momento mas por dentro uma enorme alegria, espero que todos possamos partilhar o momento noutra ocasiões.
Fernando
Parabéns a toda a rapaziada que tão bem representou a equipa dos Amigos Vale Silêncio.
Que linda forma tem o Leonel por companhia durante as corridas, tenho passado por tanto sítio e nunca vi tanta bicharada junta e todos aqueles ornamentos. Deve ter sido uma época de encantar, tanto que a memória permanece intocável e sempre com vontade de alertar para tão bonito espectáculo e apelando para que nunca ninguém se esqueça das suas verdadeiras raízes.
Abraço.
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